Jung e a Religião Pessoal

Texto extraído do livro Religião Pessoal. Adenáuer Novaes.

Muito embora fosse um homem profundamente religioso, Jung soube escrever criticamente sobre fé. Sua obra psicológica trata com relevância da alma religiosa, sem qualquer tendência sectária. Fez análises psicológicas sobre temas religiosos sem que fosse sacerdote, místico ou teólogo. Ele via a religião como uma espécie de instinto, afirmando a necessidade de cada um construir sua Religião Pessoal. Mesmo tendo sido um homem religioso, não o era como os homens de seu tempo nem, talvez, como os de hoje. Sua religiosidade estava presente na forma séria, respeitosa e independente com que tratava tudo o que dizia respeito à religião. Questões religiosas eram por ele tratadas como fenômenos psicológicos. Sua consciência sobre a existência de Deus era tão forte, que mandou insculpir no portal de pedra de sua casa a frase vocatus atque non vocatus, Deus aderit[1]. Quando lhe foi perguntado, aos 84 anos, se ainda acreditava em Deus, ele respondeu: “Eu sei. Não necessito crer, porque sei”.[2]

Psiquiatra de formação, interessou-se pelo estudo da mente humana, em particular por tudo o que se referisse à sua dinâmica e a sua estrutura. Seu conceito sobre religião ultrapassa o senso comum, relacionando-a com a transcendência.

Eu gostaria de deixar bem claro que, com o termo ‘religião’, não me refiro a uma determinada profissão de fé religiosa. A verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência do numinoso, e, por outro, na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. Um dos exemplos mais frisantes, neste sentido, é a conversão de Paulo. Poderíamos, portanto, dizer que o termo “religião” designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso.[3]

Para ele, a religião poderia ser um substitutivo perigoso da experiência de vida, necessária a todo ser humano. Ela poderia se prestar às projeções do inconsciente como uma representação do que ainda não poderia ser assumido pelo próprio indivíduo. A proposta de uma vida religiosa não poderia substituir a vida comum, na qual as experiências interpessoais conscientes devem ser intensamente vividas.

Tudo o que o homem deveria, mas ainda não pode viver em sentido positivo ou negativo, vive como figura e antecipação mitológica ao lado de sua consciência, seja como projeção religiosa ou – o que é mais perigoso – conteúdos do inconsciente que se projetam então espontaneamente em objetos incongruentes, como por exemplo em doutrinas e práticas higiênicas e outras “que prometem salvação”.[4]

Seu conceito de individualidade ou de eu interior inclui o aspecto religioso quando o relaciona com Deus, mesmo que de forma figurada. Não se trata de uma deificação teológica do ser humano, pois sua busca era por uma compreensão do psiquismo sem transferir o problema para a religião.

Dei a este ponto central o nome de si-mesmo (Selbst). Intelectualmente, ele não passa de um conceito psicológico, de uma construção que serve para exprimir o incognoscível que, obviamente, ultrapassa os limites da nossa capacidade de compreender. O si-mesmo também pode ser chamado ‘o Deus em nós’. Os primórdios de toda nossa vida psíquica parecem surgir inextricavelmente deste ponto e as metas mais altas e derradeiras parecem dirigir-se para ele. Tal paradoxo é inevitável como sempre que tentamos definir o que ultrapassa os limites de nossa compreensão.[5]

Ele acreditava que havia uma natural função religiosa, de caráter divino, no interior da alma humana, atribuindo à Psicologia o papel de mostrar ao ser humano como chegar até essa percepção. Isso corrobora a idéia de que a religião é a manifestação de algo inconsciente, não forjado pela cultura ou por uma escolha exclusivamente consciente. Sobre isso, ele afirma:

Todavia, quando demonstro que a alma possui uma função religiosa natural, e quando reafirmo que a tarefa mais nobre de toda a educação (do adulto) é a de transpor para a consciência o arquétipo da imagem de Deus, suas irradiações e efeitos, são justamente os teólogos que me atacam e me acusam de ‘psicologismo’. (...) Ela contém e corresponde a tudo quanto o dogma formulou a seu respeito e mais ainda, aquilo que torna a alma capaz de ser um olho destinado a contemplar a luz. Isto requer, de sua parte, uma extensão ilimitada e uma profundidade insondável. Já fui acusado de ‘deificar a alma’. Isto é falso, não fui eu, mas o próprio Deus quem a deificou! Não fui eu que atribuí uma função religiosa à alma; simplesmente apresentei os fatos que provam ser a alma ‘naturaliter religiosa’, isto é, dotada de uma função religiosa: função esta que não inventei, nem coloquei arbitrariamente nela, mas que ela produz por si mesma, sem ser influenciada por qualquer idéia ou sugestão. Numa trágica cegueira, esses teólogos ignoram que não se trata de provar a existência da luz, e sim de que há cegos incapazes de saber que seus olhos poderiam enxergar. Seria muito mais importante ensinar ao homem a arte de enxergar. É obvio que a maioria das pessoas é incapaz de estabelecer uma relação entre as imagens sagradas e sua própria alma, isto é, não conseguem perceber a que ponto tais imagens dormitam em seu próprio inconsciente. Para tornar possível esta visão interior, é preciso desimpedir o caminho que possibilita essa faculdade de ver. Sinceramente, não posso imaginar como isso seria exeqüível sem a psicologia, isto é, sem tocar a alma.[6]

Para ele, o conceito de Deus, que cada ser humano tem, interfere decisivamente na vida humana, na liberdade e na capacidade de julgamento. O conceito de ética está atrelado também ao de Deus.

A doutrina que ensina que o indivíduo depende de Deus representa uma exigência tão grande sobre ele quanto a do mundo. Pode até acontecer que o homem acate essa exigência de maneira tão absoluta a ponto de se alienar do mundo da mesma forma que o indivíduo se aliena de si mesmo quando sucumbe à mentalidade coletiva. Tanto num caso quanto no outro, o indivíduo pode perder sua capacidade de julgar e decidir-se livremente. A isto tendem, manifestamente, as religiões quando não se comprometem com o Estado. Neste caso, prefiro falar, de acordo com o uso corrente, de ‘confissão’ e não de ‘religião’. A confissão admite uma certa convicção coletiva, ao passo que a religião exprime uma relação subjetiva com fatores metafísicos, ou seja, extramundanos. A confissão compreende, sobretudo, um credo voltado para o mundo em geral, constituindo, assim, uma questão intramundana. Já o sentido e a finalidade da religião consistem na relação do indivíduo com Deus (cristianismo, judaísmo, islamismo) ou no caminho da redenção (budismo). Esta é a base fundamental de suas respectivas éticas que, sem a responsabilidade individual perante Deus, não passariam de moral e convenção.[7]

Reconhece a força do arquétipo religioso, colocando-o como detentor de uma energia específica, cuja não-percepção pela consciência não apaga sua existência no inconsciente. No seu entender, a negação de todos os postulados religiosos por uma pessoa requer algo de consistente e possuidor da mesma força energética do arquétipo. O ateísmo não é a negação da religiosidade inata, mas de um Deus que não mais corresponde ao desenvolvimento da psiquê. Consciente da existência do arquétipo religioso, ele afirma:

O arquétipo das idéias religiosas possui, como todo instinto, a sua energia especifica, que ele não perde ainda que sua consciência o ignore. Assim como pode ser afirmado com a maior probabilidade que todo ser humano possui todas as funções e qualidades humanas médias, podemos supor a presença de fatores religiosos normais, isto é, de arquétipos, e essa expectativa não falha como é fácil reconhecer. Quem consegue descartar um manto de fé, só pode fazê-lo graças à convicção de ter um outro à mão – plus ça change, plus ça reste la même chose! [Quanto mais se transforma, mais permanece a mesma.] Ninguém escapa do preconceito da condição humana.[8]

Mostrou a importância que o ser humano atribui à religião como um sustentáculo às suas decisões. Sua função é reguladora do equilíbrio psíquico, dando-lhe segurança, ao menos aparente ou provisória, contra as forças inconscientes que teimam em se manifestar sem a devida consciência do ego.

Dessa maneira, o homem sempre cuidou para que toda decisão grave fosse, de certo modo, sustentada por medidas religiosas. Nascem, assim, os sacrifícios para honrar as forças invisíveis, as bênçãos e demais gestos rituais. Sempre, e em toda parte, existiram ‘rites d’entrée et de sortie’ (ritos de entrada e de saída) que, para os racionalistas distantes da psicologia, não passam de superstição e magia. No entanto, a magia é, em seu fundamento, um efeito psicológico que não deve ser subestimado. A realização de um ato ‘mágico’ proporciona ao homem uma sensação de segurança, extremamente importante para uma tomada de decisão. Toda decisão e resolução necessitam dessa segurança, pois elas sempre pressupõem uma certa unilateralidade e exposição.[9]

A segurança proporcionada pela religião é comparável àquela que o ser humano atribui ao Estado. Trata-se de uma certa transposição de projeção. A segurança que se tem quando se percebe protegido pelo Estado é externa e a que se obtém com a religião é interna. Ambas se referem a conteúdos psíquicos que deveriam ser tornados conscientes. Justificando o poder do arquétipo, Jung compara a devoção religiosa à militância política. 

O próprio ditador, para executar seus atos, não pode se valer apenas das ameaças, precisando encenar o poder com grande pompa. Nesse sentido, as marchas militares, as bandeiras, faixas, paradas e comícios não diferem muito das procissões, tiros e fogos de artifício usados para expulsar os demônios. A diferença entre essas representações religiosas e os aparatos do Estado reside no fato de que a sugestiva encenação do poder estatal cria uma sensação de segurança coletiva que, no entanto, não oferece ao indivíduo nenhum tipo de proteção contra os demônios internos. Quanto mais o indivíduo se enfraquece, mais se agarra ao poder estatal, isto é, mais se entrega espiritualmente à massa. E do mesmo modo que a Igreja, o Estado ditatorial exige entusiasmo, abnegação e amor, cultivando o necessário terror à semelhança do temor de Deus que as religiões exigem ou pressupõem.[10]

Respondendo aos questionamentos do filósofo judeu-austríaco Martin Buber, Jung justifica sua análise psicológica a respeito do conceito de Deus. No texto a seguir, reafirma a ligação entre Deus e criatura, forjada na intimidade da psiquê, sem qualquer participação humana. Ele situa o ser humano como refém do que Deus implantou em seu inconsciente. 

É estranho que BUBER se escandalize com a minha afirmação de que Deus não pode existir sem uma ligação com o homem, e a considere como uma proposição de caráter transcendente. Mas eu digo expressamente que tudo, absolutamente tudo o que dizemos a respeito de ‘Deus’ é uma afirmação humana, isto é, psíquica. Mas será que a noção que temos ou formamos de Deus nunca está ‘desligada do homem’? Poderá BUBER informar-me onde foi que Deus criou sua própria imagem, sem ligação com o homem? Como e por quem semelhante coisa pode ser constatada? Vou especular ou ‘fabular’ aqui – excepcionalmente – em termos transcendentes. Deus, na realidade, formou uma imagem sua, ao mesmo tempo incrivelmente esplêndida e sinistramente contraditória, sem a ajuda do homem, e a implantou no inconsciente do homem como um arquétipo, um (...), não para que os teólogos de todos os tempos e de todas as religiões se digladiassem por causa dela, mas sim para que o homem despretensioso pudesse olhar, no silêncio de sua alma, para dentro desta imagem que lhe é aparentada, construída com a substância de sua própria psique, encerrando tudo quanto ele viesse, um dia, a imaginar a respeito de seus deuses e das raízes de sua própria psique.[11]

Em termos de capacidade para julgar o mundo e entender de religião, Jung afiança que a mente humana está impregnada de valores e paradigmas cristãos, o que dificulta muito a possibilidade de uma isenção. Isso contribui para um estilo de vida e uma forma particular de compreensão da realidade. Não se pode excluir os princípios religiosos, sejam adquiridos naturalmente pela cultura dominante ou conscientemente adotados, do sentido que se atribui à vida e à forma que é vivida.

Nossa consciência está impregnada de cristianismo e é quase inteiramente por ele formada; por isso a posição inconsciente dos contrários não pode ser aceita, simplesmente porque parece excessiva a contradição com as concepções fundamentais dominantes. Quanto mais unilateral, rígida e incondicional for a defesa de um ponto de vista, tanto mais agressivo, hostil e incompatível se tornará o outro, de modo que a princípio a reconciliação tem poucas perspectivas de sucesso. Mas, se o consciente pelo menos reconhecer a relativa validade de todas as opiniões humanas, o contrário também perde algo de sua incompatibilidade. Entretanto, esse contrário procura uma expressão adequada, por exemplo, nas religiões orientais, no budismo, no hinduísmo e no taoísmo. O sincretismo (mistura e combinação) da teosofia vem amplamente ao encontro dessa necessidade e explica o seu elevado número de adeptos.[12]

Novamente Jung vincula a noção de individualidade ao conceito de Deus, afirmando que o Si-Mesmo é uma imagem divina no interior da alma humana. O processo de realização do ser humano é comparável a uma experiência religiosa de longo curso, na qual o ego se lança ao encontro com a totalidade do Si-Mesmo, para a unidade transcendente.

A finalidade da evolução psicológica é tal, como na evolução biológica, a auto-realização, ou seja, a individuação. Visto que o homem só se percebe a si próprio como um ego, e o Si-mesmo como totalidade, é algo indescritível, não se distinguindo de uma imagem de Deus, a auto-realização não é outra coisa em linguagem metafísica e religiosa, do que a encarnação divina. É isto precisamente que vem expresso na filiação de Cristo. Como a individuação significa uma tarefa heróica ou trágica, isto é, uma missão dificílima, ela implica o sofrimento, a paixão do ego, ou seja, do homem empírico, do homem comum, atual, quando entregue a um domínio mais amplo e despojado de sua própria vontade, que se julga livre de qualquer coação. Ele é como que violentado pelo Si-mesmo.[13]

No texto a seguir, é possível perceber o que pode significar, para o processo de individuação humano, o lugar atribuído à religião. A relevância a ser dada poderá custar o tempo em que ela se dará. A segurança que se pretende ter na adoção de uma religião poderá alienar o ser humano de si mesmo, além de excluí-lo de uma real relação com o divino.

Uma projeção exclusivamente religiosa pode privar a alma de seus valores, torná-la incapaz de prosseguir em seu desenvolvimento, por inanição, retendo-a num estado inconsciente. Ela pode também cair vítima da ilusão de que a causa de todo o mal provém de fora, sem que lhe ocorra indagar como e em que medida ela mesma contribui para isso. A alma parece assim tão insignificante a ponto de ser considerada incapaz do mal e muito menos do bem. Entretanto, se a alma não desempenha papel algum, a vida religiosa se congela em pura exterioridade e formalismo. Como quer que imaginemos a relação entre Deus e a alma, uma coisa é certa: é impossível considerar a alma como “nada mais do que”. Pelo contrário, ela possui a dignidade de um ser que tem o dom da relação consciente com a divindade. Mesmo que se tratasse apenas da relação de uma gota de água com o mar, este último deixaria de existir sem a pluralidade das gotas.[14]

Jung considera ainda que só é possível um vínculo entre o ser humano e Deus se existir na psiquê algo efetivamente divino, posto por Deus para que não houvesse possibilidade de desligamento e para que fosse de fato percebido pelo ser humano.

Seria uma blasfêmia afirmar que Deus pode manifestar-se em toda a parte, menos na alma humana. Ora, a intimidade da relação entre Deus e a alma exclui de antemão toda e qualquer depreciação desta última. Seria talvez excessivo falar de uma relação de parentesco; mas, de qualquer modo, deve haver na alma uma possibilidade de relação, isto é, forçosamente ela deve ter em si algo que corresponda ao ser de Deus, pois de outra forma jamais se estabeleceria uma conexão entre ambos. Esta correspondência, formulada psicologicamente, é o arquétipo da imagem de Deus.[15]

Percebia a religiosidade latente em todas as experiências humanas, como se tudo refletisse a vontade divina. O ser humano, quer em seus atos virtuosos ou em seus vícios, espelha uma busca por um entendimento da vontade divina.

(...) trata-se de uma atitude humana profundamente respeitosa em relação ao fato, em relação ao homem que sofre esse fato e em relação ao enigma que a vida desse homem implica. O homem autenticamente religioso assume precisamente tal atitude. Ele sabe que Deus criou todas as espécies de estranhezas e coisas incompreensíveis, e que procurará atingir o coração humano pelos caminhos mais obscuros possíveis. É por isso que a alma religiosa sente a presença obscura da vontade divina em todas as coisas.[16]

A ritualização da experiência numinosa ou de contato com o sagrado, no seu entender, ao mesmo tempo que oportuniza a manifestação da psiquê religiosa, aliviando a tendência do inconsciente em tensionar a consciência, dificulta o acesso ao significado profundo que encerra.

As confissões de fé são formas codificadas e dogmatizadas de experiências religiosas originárias. Os conteúdos da experiência foram sacralizados e, via de regra, enrijeceram dentro de uma construção mental inflexível e, freqüentemente, complexa. O exercício e a repetição da experiência original transformaram-se em rito e em instituição imutável. Isto não significa necessariamente que se trata de uma petrificação sem vida. Pelo contrário, ela pode representar uma forma de experiência religiosa para inúmeras pessoas, durante séculos, sem que haja necessidade de modificá-la.[17]

 Sobre a culpa, muitas vezes reforçada pela religião formal, Jung ressalta o prejuízo em se alimentar qualquer sentimento correspondente na consciência, reafirmando o propósito da individuação como uma meta que não despreza os contributos da atitude religiosa.

O problema da cura é um problema religioso. Uma das imagens que ilustram o sofrimento neurótico no interior de cada um é a da guerra civil no plano das relações sociais que regulam a vida das nações. É pela virtude cristã que nos impele a amar e a perdoar o inimigo que os homens curam o estado de sofrimento entre as pessoas. Aquilo que por convicção cristã recomendamos exteriormente, é preciso que o apliquemos internamente no plano da terapia das neuroses. É por isso que os homens modernos não querem mais ouvir falar em culpa ou pecado. Cada um já tem muito o que fazer com a própria consciência já bastante carregada e o que todos desejam saber e aprender é como conseguir reconciliar-se com as próprias falhas, como amar o inimigo que se tem dentro do próprio coração e como chamar de ‘irmão’ ao lobo que nos quer devorar.[18]

Criticando as imitações religiosas ou aqueles que pregam uma petrificação de propostas arcaicas de comportamento, reafirma a necessidade de uma atitude singular no processo de desenvolvimento da personalidade. Sua afirmação se alinha com a proposta de constituição de uma Religião Pessoal quando admite que:

O homem moderno também não está mais interessado em saber como poderia imitar a Cristo. O que quer, antes de tudo, é saber como conseguir viver em função de seu próprio tipo vital, por mais pobre ou banal que seja. Tudo o que lhe lembra imitação se lhe afigura contrário ao impulso vital, contrário à vida, e é por isso que ele se rebela contra a história que gostaria de retê-lo em caminhos previamente traçados. Ora, para ele todos esses caminhos conduzem ao erro. Ele está mergulhado na ignorância, mas se comporta como se sua vida individual constituísse a expressão de uma vontade particular divina, que deveria ser cumprida antes e acima de tudo — daí o seu egoísmo, que é um dos defeitos mais perceptíveis do estado neurótico. Mas quem disser ao homem moderno que ele é demasiado egoísta perdeu irremediavelmente a partida com ele. O que se entende perfeitamente, pois, agindo assim, não faz senão empurrá-lo cada vez mais para a neurose.[19]

Pelos textos selecionados, pode-se observar uma tendência de Jung em querer aproximar o ser humano cada vez mais de uma religiosidade verdadeira, coerente e ética, além de querer inseri-lo em uma filiação divina direta. Fica claro, ao menos pela perspectiva da Religião Pessoal, que a posição de Jung não é a de um iconoclasta vulgar nem a de um anarquista contra a religião formal, mas a de quem está comprometido com o processo de desenvolvimento do ser humano, propondo uma compreensão isenta da tradição religiosa petrificada.

Sua religiosidade foi atestada pelos princípios deixados, pelas propostas de compreensão da psiquê humana, pelas considerações a respeito da alma e pela postulação a respeito do Inconsciente Coletivo, fator de irmandade entre as criaturas.

A psiquê é a matéria prima de Deus, e por onde ele se apresenta. Jung soube muito bem entender e retratar ambos.
 

[1]Invocado ou não, Deus estará presente.
[2]McGuire, William e Hull, R. F. C.. C. G. Jung: entrevistas e encontros. São Paulo: Cultrix, 1982. p. 375.
[3]Jung, C. G. Obras Completas. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1983. v. XI, par. 9, p. 4.
[4]Idem, Obras Completas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000. v. IX/1, par. 287, p. 169.
[5]Jung, C. G. Obras Completas. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1981. v. VII, par. 399, p. 226.
[6]Jung, C. G. Obras Completas. 4ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1991. v. XII, par. 14, p. 25.
[7]Idem, Obras Completas. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993. v. X, par. 507, p. 241.
[8]Jung, C. G. Obras Completas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000. v. IX/1, par. 129, p. 75.
[9]Idem, Obras Completas. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993. v. X, par. 512, p. 244.
[10]Jung, C. G. Obras Completas. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993. v. X, par. 512, p. 244.
[11]Jung, C. G. Obras Completas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000. v. XVIII/2, par. 1508, p. 245.
[12]Idem, Obras Completas. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1981. v. VII, par. 118, p. 70.
[13]Jung, C. G. Obras Completas. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1983. v. XI, par. 233, p. 156.
[14]Jung, C. G. Obras Completas. 4ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1991. v. XII, par. 11, p. 22.
[15]Ibidem, p. 23.
[16]Jung, C. G. Obras Completas. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1983. v. XI, par. 519, p. 340.
[17]Ibidem, par. 10, p. 4.
[18]Jung, C. G. Obras Completas. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1983. v. XI, par. 523, p. 343.
[19]Ibidem, par. 524, p. 343.

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